Torto Arado

De Itamar Vieira Júnior – Prêmio Leya 2018

Gosto muito quando leio um livro que retrata o Brasil como ele é, desse jeito que a gente não vê, que a gente não sabe e passa a conhecer por meio das histórias contadas por nossos escritores. Gosto de ler e de escrever sobre pessoas, sobre vidas que se desenrolam (ou se enrolam) esquecidas, ao largo da realidade urbana de cada dia, nos muitos cantos do país. Gosto de conhecer esse povo, ainda que me entristeçam suas desgraças, causadas pela minoria dominante, que os isolaram na mais completa falta de direitos básicos.

Itamar Vieira Júnior ambienta Torto Arado num desses cantos e descreve uma saga que se repete por aqui há muitas gerações: a das famílias de negros, que permaneceram pobres e segregados, prisioneiros da falsa liberdade conquistada com a abolição.

Saltam aos olhos o chão de terra, a roça, a mata, o céu, o balde de água, o casebre de barro, a chuva, a seca, o trabalho escravo, em troca de um teto roto para abrigar o corpo depois da lida. O suor no rosto, o dorso curvado, a cabeça baixa, as mãos calejadas, as vistas turvas, os pés descalços e inchados, o sangue escorrendo, a carcaça fria. A fome, as perdas, a humilhação engolida, o grito de dor agarrado na garganta, a miséria da falta de instrução.

Muitas das tragédias que fazem e sempre fizeram parte do cotidiano das populações invisíveis do país, são vividas pelos personagens. Famílias que saíram em busca de sobrevivência e tiveram que sustentar suas demandas se arrastando de um lado a outro, até encontrar lugar para trabalhar, garantir um terreiro para plantar e comer o que o sol, a chuva e o patrão permitissem. Em Torto arado, elas aparecem embaixo de um céu que impõe seu peso, seu poder de vida e morte, seja azul iluminado, nublado ou derrubando água, revelando o tanto que essa gente viveu (e vive) a nu na vida, entregue à vontade de Deus. E que só Deus conhece.

O que os protege das angústias da vida é a religiosidade, apresentada de modo impecável por Itamar. O sincretismo que mistura as crenças numa só, com seus santos católicos, orixás, atabaques, dança e rodopio; a comunidade que sobrevive com a ajuda de curador-rezador. Encantadoras as descrições do jarê, da festa em homenagem à Santa Bárbara, ou Iansã, da convivência e do respeito aos espíritos e a presença constante do invisível entre os trabalhadores de Água Negra. É na religiosidade e na fé que se voltam e se persignam, para resistir na labuta e sofrer com dignidade, cultivando a crença nos intermediários do Altíssimo, nos guias, nos guardiões, para aquecer o coração, acalmar a alma, e reunir força para prosseguir de pé.

E no fim das contas são eles, os protetores ocultos, os que abençoam, que livram dos males e das ameaças constantes; e os salvam por meio de seus próprios corpos.

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