Não mais

O avião taxiava na pista naquele dia nublado, escuro, porém sem chuva. Um dia depressivo para muitos, mas não para Josephine. Voltava para Recife, onde trabalhava há cinco anos, para retomar a rotina ao lado do seu atual marido nordestino. Olhou a paisagem por cima da asa e reviu na mente o filme dos anos de casamento, quase quadro a quadro. O Rio de Janeiro ficava para trás, definitivamente, depois da última conversa com o ex. Nunca mais. Nunca mais as humilhações de sempre, mesmo depois de separados. Nunca mais xingamentos, ofensas, cobranças cruéis. Nunca mais ouviria insinuações sobre a educação do filho, hoje com 23 anos e feliz, muito feliz, longe do pai. Não foi o que sonhara para a relação entre eles, porém a vida os empurrou para este rumo. O rapaz agora morava no norte do país, atuando como pesquisador acadêmico na área ambiental no interior do Pará.

Josephine respirou fundo quando o avião fez a curva na cabeceira da pista e iniciou sua corrida para levantar voo. Aquele momento era sempre tenso. Sair do chão. Não viu o aeroporto ficando para trás; fechara os olhos para reabri-los somente quando estivesse no ar. E viu, lá de cima, o Rio ao anoitecer. O Rio de tantas lembranças maravilhosas, assim como a própria cidade. Porém, embora feliz por finalmente se despedir de seu passado, não podia deixar de repassar tantas horas difíceis em que sua fraqueza lhe lhe fez suportar inúmeros dissabores, causados por uma relação de disputa com o ex-marido. Uma disputa inventada, pois a enxergava grande demais.

A conversa derradeira foi num restaurante próximo à rua em que ela morara anos atrás, antes de ser aprovada em concurso para dar aulas numa universidade no nordeste. Fizera seu doutorado justamente para ter oportunidades de sumir e, enfim, estava longe. Alceo e Josephine se falaram durante quase uma hora. Ele, como sempre, usava o cinismo para se defender do que imaginava ser a força dela. Achava-a arrogante, quando na verdade era ele o fraco. Separados há oito anos, haviam se divorciado somente meses atrás por causa de embaraços nos negócios que ambos tinham em comum e que Alceo tratava de piorar tudo, inconformado com o fim do casamento que julgava sob seu domínio. Já oficialmente divorciados, Alceo não dava trégua. Josephine se cansou, marcou o encontro, deu um ultimato. Precisava pôr um fim naquela pendenga, sem interferência de advogados, olho no olho, com todas as verdades na cara.

Jamais se esqueceria das discussões, das bofetadas quando tentava se impor, das frases horrorosas que ouvia rotineiramente. “Você é uma bosta como mulher e uma merda como ser humano, ou seja, um nojo de qualquer jeito!” Josephine não entendia porque Alceo agia desse modo, muito menos como aguentou o inferno da convivência  por arrastados quinze anos. Amava-o, na verdade. “Preciso me encantar com alguma coisa”, justificou-se Alceo, numa festa, quando ela suspeitou do interesse dele por uma garota.

Uma minúscula luz se via no distante Rio de Janeiro e Josephine voltou o olhar para dentro do avião. Recostou a cabeça, fechou novamente os olhos. Tentou dormir. O filme continuava a passar. Estava no início da gravidez quando Alceo provocou nova briga, porque insistia em promover uma festa surpresa para uma amiga que faria aniversário, mas Josephine estava enjoada, não suportava sentir cheiro de comida. E Alceo bateu o pé, argumentando que a tal amiga era muito especial e que não poderia ficar sem festa de aniversário. “Aliás, qualquer pessoa no mundo é especial. Você não.” Morreria sem entender tamanho desprezo. Ódio. Insegurança.

Um sorriso sereno se abriu no rosto de Josephine. Acabou, finalmente. Puxou o ar numa respiração profunda e soltou-o vagarosamente, jogando para fora o que restava de mágoa. Deixara Alceo na mesa, após o café, olhando incrédulo sua saída, depois de lhe dizer o que sentia e se quisesse, que botasse fogo nos galpões. Não conhecera tal coragem antes, no entanto decidira não suportar intervenções, nem nos negócios, nem na relação com o filho, nem permitiria que telefonasse para seu marido para contar detalhes de suas noites de sexo apaixonado e selvagem, após “apanhar como merecia”. Ele permaneceu ali, vendo-a sair, altiva, e pegar o táxi rumo ao aeroporto. Bebeu o pouquinho de café que restava na xícara e observou que a xícara dela não havia sido tocada. E Josephine não esqueceria o longo suspiro e o sorriso de alívio dentro do carro, numa descarga de emoções represadas.

***

Horas depois Josephine desembarcava no aeroporto do Recife. O marido a esperava no saguão, ansioso. Abraçaram-se e se olharam.

– Está estranho – observou – Quer me dizer alguma coisa?

– Alceo está morto. Caiu no restaurante após tomar um café. Não se sabe a causa da morte, parece ataque cardíaco. O corpo está no hospital, mas já entrou sem vida na ambulância.

Josephine suspirou e puxou o marido pelo braço.

– Vamos. Tenho apenas mais uma missão pela frente para encerrar de vez este assunto. Preciso falar com meu filho.